
O SilĂȘncio
Em um mundo pĂłs-apocalĂptico, uma famĂlia luta para sobreviver em um cenĂĄrio completamente devastado por algum tipo de espĂ©cie desconhecida. Aprendendo a caçar para comer, eles contam apenas uns com os outros em um planeta onde agora quase ninguĂ©m Ă© confiĂĄvel. Enquanto a iminĂȘncia de um desconhecido ataque final assola seus pensamentos, sĂł lhes resta tentar entender as circunstĂąncias.
O mundo estĂĄ sendo atacado – ou pelo menos os Estados Unidos, jĂĄ que as imagens na televisĂŁo mostram apenas cidadĂŁos norte-americanos correndo de um lado para o outro. Criaturas voadoras, e sem olhos, atacam qualquer ser vivo que produza o mĂnimo som, a exemplo de uma mulher idosa tossindo levemente dentro de um carro fechado – mas curiosamente nĂŁo escutam dezenas de portĂ”es de ferro abrindo e fechando. Para sobreviver, a famĂlia Andrews precisa se mudar para o campo, onde teoricamente hĂĄ menos barulho – ou poderiam simplesmente ficar dentro de casa, mas entĂŁo nĂŁo haveria filme, razĂŁo pela qual o nĂșcleo julga mais seguro e menos ruidoso fazer uma longa viagem sem destino ao invĂ©s de simplesmente trancar portas e janelas. Para isso, ele contam com GPS, Internet banda larga e celulares que funcionam Ă perfeição, apesar de cidades inteiras terem sido destruĂdas.
Ă ao mesmo tempo muito fĂĄcil e muito difĂcil acreditar na trama de O SilĂȘncio. FĂĄcil, porque se trata de uma famĂlia de vocação universal, incluindo uma criança pequena, uma filha surda, um cachorro e uma idosa doente para criar simpatia. FĂĄcil, igualmente, porque acabamos de ver uma trama muito semelhante em Um Lugar Silencioso e Bird Box, nos quais este filme Ă© obviamente inspirado, como tentativa de navegar no sucesso alheio. DifĂcil, no entanto, por conta de suas inĂșmeras incoerĂȘncias e exageros. O roteiro parece ter sido feito Ă s pressas, sem preocupação com a coerĂȘncia narrativa. Os responsĂĄveis devem ter apostado que a premissa, em si, se encarregaria da tensĂŁo, sem a necessidade de explorar melhor o papel de cada membro da famĂlia.
Por isso, o resultado soa um tanto mais simplĂłrio do que seus referentes, e muito mais conservador. Primeiro porque, enquanto Um Lugar Silencioso e Bird Box colocavam as mulheres em papel de destaque, Ă frente das decisĂ”es, aqui as protagonistas femininas apenas aguardam as ordens do marido/pai/genro (Stanley Tucci), enquanto ostentam rostos sofridos. Segundo, porque a construção de personagens Ă© nula: o fato de Ally (Kiernan Shipka) ser uma garota surda Ă© praticamente inutilizado no filme, a doença letal da avĂł Ă© esquecida, a coragem sem limites do amigo Glenn (John Corbett) Ă© subaproveitada. Os roteiristas imaginam uma caracterĂstica principal para cada personagem, apresentam-na desde o princĂpio, e depois esquecem de aplicĂĄ-la ao resto da narrativa.
Acima de tudo, a impressĂŁo de conservadorismo provĂ©m de seu aspecto religioso. Isso se deve nĂŁo exatamente Ă seita que aparece de lugar algum, toda vestida de preto em representação de sua mĂĄ Ăndole (e que sobe em telhados sem produzir sons), mas na lĂłgica do sacrifĂcio como elemento necessĂĄrio para a manutenção da famĂlia. Um Lugar Silencioso e Bird Box tambĂ©m trabalhavam com a ideia de pais dispostos a dar a vida pelos filhos, no entanto esta noção era diluĂda pela existĂȘncia de outros membros do grupo que contribuĂam Ă sobrevivĂȘncia sem precisarem recorrer Ă tragĂ©dia. Em The Silence, apenas o martĂrio permite Ă trama se desenvolver: pelo menos cinco pessoas e animais sĂŁo sacrificados em nome da famĂlia Andrews. Estes agradecem a morte alheia e seguem adiante sem grandes traumas psicolĂłgicos, esperando pela prĂłxima intervenção externa.
Este elemento incomoda bastante num drama de sobrevivĂȘncia: a passividade dos protagonistas. Um Lugar Silencioso, Bird Box, mas tambĂ©m Rua Cloverfield, 10, Ao Cair da Noite, Light of My Life, O Regresso e tantos outros sĂŁo baseados na inventividade e no iniciativa de seus protagonistas diante do perigo. Dos planos arriscados nasce a tensĂŁo: serĂĄ que darĂŁo certo? Mas a famĂlia Andrews Ă© surpreendentemente plĂĄcida, esperando o mundo agir por ela, surgindo na forma de uma garotinha indefesa, de uma casa que aparece no horizonte ou de um namorado que avisa por mensagem onde se encontra o refĂșgio mais prĂłximo. AtĂ© por isso, a conclusĂŁo decepciona: nenhum plano Ă© posto Ă prova – os personagens apenas seguem em frente. A trama se suspende porque seria preciso parar em algum momento, porĂ©m os conflitos permanecem sem conclusĂŁo.
O diretor John R. Leonetti, que ostenta seu nome orgulhosamente no inĂcio da produção (como âum filme deâ, e nĂŁo âdirigido porâ), demonstra dificuldade em trabalhar a ambientação, em construir tensĂŁo, em elaborar personagens, em dirigir atores. AlĂ©m disso, nĂŁo evita a impressĂŁo de fornecer um genĂ©rico de dois dramas de terror recentes, e muito melhores do que este. The Silence pode funcionar, no entanto, com o pĂșblico que nĂŁo tenha visto estas referĂȘncias anteriores, ou que se preocupe mais com a sugestĂŁo do terror (o ataque de monstros voadores e sanguinĂĄrios) do que com o desenvolvimento do mesmo.