
Mandy – Sede de Vingança
Em algum lugar no deserto primitivo perto das Montanhas das Sombras, no ano de 1983, Red Miller (Nicolas Cage) e sua esposa Mandy (Andrea Riseborough) vivem uma vida tranquila. Depois que uma seita religiosa invade o local e mata o amor de sua vida, Red vive apenas por uma coisa: caçar esses maníacos e exigir vingança.
Uma vez, enquanto ministrava uma aula de cinema para crianças, estávamos fazendo um exercício sobre as cores: os prováveis significados delas em nossa cultura ocidental, o quanto e como elas podem moldar o que sentimos ao assistir a um filme… Nessa atividade, que consistia em pintar um determinado sentimento de forma abstrata, um dos grupos – encarregado de pintar o amor – foi muito além do esperado. Após preencher o desenho sem forma com todas as cores que estavam disponíveis, pedi que explicassem o que haviam feito e o motivo de terem fugido do vermelho. A resposta que uma pequena me deu, simples e ao mesmo tempo de uma profundidade que a vida adulta parece esquecer, marcou minha forma de enxergar o mundo para sempre: “Porque o amor não é tão óbvio.”
Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!
Talvez seja estranho falar de amor em uma crítica sobre um filme que, no final das contas, é sedimentado em uma estética quase que alucinógena e retalhado por uma vingança sanguinolenta. Por outro lado, não é à toa que o diretor e corroteirista Panos Cosmatos (de Além do Arco-Íris Negro, 2010) investe metade do filme na relação entre Red (Nicolas Cage) e Mandy (Andrea Riseborough). Apresentando o casal de uma maneira crua e, ao mesmo tempo, quase espiritual, Cosmatos liga esses protagonistas sem necessitar de qualquer exposição.
É um fato que Red, cansado após um dia de trabalho braçal, chega em casa visivelmente e não hesita em brincar com Mandy, conversar com ela, interessar-se por sua vida e, sobretudo, admirar o que ela tem feito. A expressão de Cage, a propósito, enquanto se mantém em sua personagem e observa atento o desenho feito por Mandy, por cima dos ombros dela (sem que ela precise ver seu rosto), é de uma delicadeza fascinante. O diretor, interessado nessa expressão, faz a cena se estender um pouco mais do que normalmente aconteceria. Mandy: Sede de Vingança (que está disponível no Telecine Play) é, poeticamente, sobre isso: sobre um homem que admira de verdade e gratuitamente, doa-se inteiramente e ama para além do que a morte pode fazer.
Partindo desse espectro romântico, o ponto crucial que impulsiona Jeremiah (Linus Roache) a descartar Mandy é a percepção dele de que não conseguiu conquistar a atenção que procurava nela. Nu (de uma nudez frontal muito natural), ele, do alto de sua loucura de extremismo religioso, percebe que não terá nela uma discípula ou uma submissa. E ela, que havia dito a Red sobre a sua preferência pelo planeta Júpiter (nome também do maior dos deuses romanos), assina o início de uma tempestade. Se no maior planeta do sistema solar há um olho de furacão com um diâmetro que engoliria a Terra com facilidade, é na morte que ela (Mandy) assume a sua potência como tal. Destruindo a tudo e a todos a partir das mãos da vingança, Mandy: Sede de Vingança parece tratar, para além do amor, de libertação. Assim, Saturno, como o deus romano (e sendo o planeta preferido de Red), assume a segunda metade do filme com sua foice característica.
É interessante perceber como nada para Cosmatos é em vão. A certo ponto, por exemplo, a sobreposição dos rostos de Jeremiah e Mandy parece afirmar que, apesar de tudo, há uma igualdade entre eles e talvez seja a semelhança do equilíbrio, o yin (o princípio feminino) e o yang (o princípio masculino) misturando-se até o limite da percepção da divisa; o bem e o mal equilibrando-se em uma imagem perturbadora. Do mesmo modo, os semimonstros da seita diferem-se da jovem Irmã Lucy (Line Pillet) por serem o fim de um ciclo completo: o ciclo de uma lavagem cerebral e espiritual. Enquanto eles são a personificação do que não tem mais volta, Lucy é o reflexo, desde a sua primeira aparição, da inocência, daquilo que ainda pode ser recuperado. Red, que afogou cruelmente o Irmão Swan (Ned Dennehy) em suas próprias palavras às vistas dela (Lucy), poupa-a. Em um misto de libertação (justamente) e medo do que há por vir, ela deixa escorrer uma lágrima.
A brutalidade de Mandy: Sede de Vingança, que, em uma primeira vista, pode ser considerada como exagerada, tende a receber uma visão menos taxativa durante a descoberta de suas camadas. Não há morte, aqui, que seja descomprometida com o que o filme pretende expor. Há espaço, dessa forma, para referências pontuais do cinema de terror dos anos 1980 (o filme se passa em 1983). De uma vestimenta espinhosa à la cenobita de Hellraiser: Renascido do Inferno (de Clive Barker, 1987) – com direito à menção sobre perversão sexual que parece ter saído da mente do próprio Barker (vide o pênis que, na verdade, é uma faca) – à citação de que eles (os semimonstros) são adoradores da dor (sendo a dimensão dos cenobitas uma realidade de dor e tortura), trazendo, ainda, a gangue de motoqueiros de Mad Max 2: A Caçada Continua (de George Miller, 1981) para o terror.
E Cosmatos não se perde em suas referências. Transformando tudo ao seu estilo – uma espécie de terror exploitation poem –, o diretor ainda remete a outros clássicos do gênero, como Uma Noite Alucinante 2 (de Sam Raimi, 1987), O Massacre da Serra-Elétrica 2 (de Tobe Hooper, 1986), Raça das Trevas (de Barker, 1990) e, especialmente em sua morte final, Sexta-Feira 13, Parte 3 (de Steve Miner, 1982).
Essa última carrega uma simbologia que pode causar muitas interpretações: Ao matar o homem causador de tudo, o líder que dizia estar em contato com Deus – esmagando o seu crânio com as próprias mãos como Jason o faria –, Red está exterminando o sujeito que tinha como virtude a manipulação mental de outros. Se o Irmão Swan morreu pela boca por não se calar, Jeremiah encontra seu fim pela compressão da cabeça por insistir em manipular… até o nível mais humilhante para o ser machista e misógino que ele é: “Eu chupo você! Eu posso chupar você! É isso que você quer?”
Ambos morreriam de qualquer forma, tamanha a força do furacão jupteriano causado pela assassinato brutal de Mandy e dada a sede de vingança saturnina de Red, mas, em Mandy: Sede de Vingança, os fins justificam o início: Nada como iniciar situando que o casal tão unido reside nas proximidades de Crystal Lake e finalizar a vingança pela dissolução desse amor com um golpe eternizado por Jason Voorhees (morto por afogamento no Acampamento Crystal Lake).
Com Cage tendo liberdade para expressões convenientemente exageradas – algumas que já se tornaram memes –, pode ficar também a impressão de que dificilmente o filme funcionaria da mesma maneira com outro ator ou, ao menos, com um ator de menor gabarito. É certo que, por conta de dívidas devido à sua personalidade extravagante, Cage tem aceitado papéis em todo tipo de filme (e a maioria é de produções no mínimo duvidosas), mas também é fato que há um peso empático no ator – que foi indicado ao Oscar pelo excepcional Adaptação (de Spike Jonze, 2002) e venceu por Despedida em Las Vegas (de Mike Figgis, 1995) – difícil de encontrar em outros.
De quebra, enquanto a fotografia de Benjamin Loeb (de Hello Destroyer) constrói toda a atmosfera sensorial do poema de exploração do terror proposto por Cosmatos, é a trilha sonora hipnótica do saudoso Jóhann Jóhannsson (de A Chegada) que cede toda uma camada extra de percepção. Passando por sintetizadores que tendem a localizar o filme em sua época pretendida (os anos 1980, como dito), por guitarras que parecem saídas de bandas de doom metal – subgênero que influenciou os primeiros discos da Black Sabbath (Mandy veste uma camiseta da banda em um trecho do filme) – e por uma bateria cirúrgica que soa em momentos bem específicos (como a chegada gradativa da morte, enfim, de Jeremiah), o compositor faz com que seu trabalho seja um dos grandes motivos para que Mandy: Sede de Vingança funcione.
No fim de tudo, retornando de sua caçada, Red sorri ensandecido ao, ilusoriamente, enxergar Mandy ao seu lado. Um homem que, ao admirar de verdade e gratuitamente, doou-se literalmente por inteiro e, em sua consciência já retorcida por tanto ódio despendido, foi até aonde a morte o separou de sua amada e a trouxe de volta. Dentro de sua mente, claro, mas, como diria a sabedoria de uma criança, “porque o amor não é tão óbvio.”