
Ă€ Queima-Roupa
Para salvar a esposa grávida, um enfermeiro se vê forçado a ajudar um criminoso ferido em uma corrida contra o tempo e policiais corruptos.
O primeiro aspecto que desperta atenção nesta comĂ©dia de ação Ă© o porte de suas ambições artĂsticas. À Queima-Roupa parte de uma produção de recursos visivelmente limitados, sem procurar subverter as principais regras dos gĂŞneros e subgĂŞneros explorados: o filme de vingança Ă la Busca Implacável, a dupla cĂ´mica improvável investigando crimes como em A Hora do Rush, a trama do azarĂŁo que enfrenta as mais poderosas gangues locais etc. Mesmo assim, o diretor Joe Lynch, de currĂculo bastante modesto, utiliza esta oportunidade para demonstrar todo o seu potencial atrás das câmeras.
Assim, a fuga inicial de Abe (Frank Grillo) Ă© abordada com grande fluidez de câmera e uso atĂpico de lentes; a preparação de uma mochila Ă© vista atravĂ©s de um longo plano-sequĂŞncia giratĂłrio com o enfermeiro Paul (Anthony Mackie) selecionando objetos ao redor do cĂ´modo; e mesmo uma simples chegada ao hospital, fora de uma ocasiĂŁo de urgĂŞncia, Ă© filmada com a câmera na altura dos pĂ©s dos atores, em contra-plongĂ©e, com objetivas grandes-angulares para criar impressĂŁo de amplitude contra o cĂ©u da cidade. Muitos outros exemplos poderiam ser citados, incluindo o uso de luz neon durante o dia e as imagens de câmeras de segurança. Lynch Ă s vezes se complica atĂ© demais no malabarismo das câmeras, mas apresenta uma saudável vontade de experimentar composições improváveis para situações aparentemente banais.  Â
AlĂ©m disso, os atores principais estĂŁo muito confortáveis em seus papĂ©is. Frank Grillo já interpretou inĂşmeras vezes o vilĂŁo impiedoso, mas aqui apenas encarna um sujeito solitário cuja maior preocupação constitui, para a nossa surpresa, o amor do irmĂŁo. Anthony Mackie foge Ă envergadura dos super-herĂłis para compor um homem comum, sem preparo para a luta e cujas ações soam ora perspicazes, ora imprudentes, como convĂ©m a um homem comum em situação de desespero. Mesmo a esposa Taryn (Teyonah Parris), ao invĂ©s da habitual vĂtima esperando para ser salva, demonstra-se muito mais combativa e inteligente do que de costume. O projeto atenua os maniqueĂsmos (o belo caráter dos salvadores, a fragilidade dos sequestrados) para produzir uma trama mais interessante sobre a corrupção do dia a dia, aquela confundida com esperteza, malandragem, com a vontade de levar a melhor.
Isso nĂŁo significa que Lynch produza alguma análise sociolĂłgica complexa, muito pelo contrário: o roteiro flerta frequentemente com a conclusĂŁo de que “todo mundo Ă© ladrĂŁo” e “ninguĂ©m presta de fato”, algo felizmente atenuado pela gradativa amizade que desenvolve entre os personagens principais. Nasce entre Abe e Paul um laço menos relacionado Ă afinidade do que Ă necessidade: eles precisam um do outro, e por isso se protegem. Esta Ă© uma configuração mais plausĂvel do que apostar numa transformação moral de cada um deles, ou seja, no apelo ao senso de coletividade pelas vias do afeto. Mesmo dentro das gangues e delegacias corrompidas atĂ© os ossos – aliás, as duas se parecem muito nesta histĂłria – as pessoas se unem por senso de oportunidade, estratĂ©gia ou necessidade. Como se percebe pelo casal Paul-Taryn e pelos irmĂŁos Abe-Mateo (Christian Cooke), o amor está reservado Ă esfera domĂ©stica, familiar, contra a selva da vida pĂşblica. Existe um ponto de vista bastante amargo por trás desta fábula de ares prĂ©-apocalĂpticos.
Ă€ Queima-Roupa se transforma bastante com a chegada de Big D (Markice Moore), grande chefe do crime que revela ser, na verdade, um rapaz franzino, de voz aguda e uma paixĂŁo incontrolável por cinema. Dentro de uma narrativa que já apostava no humor orgânico das diferenças entre o ladrĂŁo profissional (Abe) e o amador (Paul), a chegada de Big D investe numa comicidade mais sublinhada e menos orgânica. Por mais divertido que seja ver o gângster citar filmes e transformar um plano sangrento em cena de cinema, estes trechos soam desconexos do resto da trama em termos de tom e estilo. AlĂ©m disso, o espectador precisa ser bastante condescendente com as “licenças poĂ©ticas” de ordem mĂ©dica (uma fraquĂssima cena de parto) e com os flashbacks que esclarecem muito pouco sobre o passado dos personagens.
De certo modo, a produção se enfraquece cada vez que tira a atenção da dupla central para se concentrar nos problemas da policial carrasca ou do gângster engraçado. Mesmo assim, os momentos com Paul e Abe juntos são majoritários, e elevados tanto pela qualidade discreta da ação quanto pelo ritmo dos diálogos, que não se levam muito a sério. É interessante pensar que, na maioria das produções policiais, a história se interrompe quando o crime é resolvido e os responsáveis são punidos. Aqui, interessa a Lynch mostrar o desenlace de cada personagem e o valor da amizade improvável, que não se transforma numa afinidade cotidiana, mas numa espécie de cicatriz que marcará o percurso dos dois protagonistas para sempre.